TODA MORTE É EVITÁVEL
- tguedesbarros
- 16 de mai. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de out. de 2024
O vento soprou. Continuou soprando por um longo tempo. Olhei para o vazio da varanda e da sala. O céu, abandonado pelas nuvens em azul nostalgia. Aquele não era um apartamento que me trazia lembranças marcantes. As visitas aconteciam geralmente aos domingos e quando ele estava em Brasília. Ainda assim, o lugar estar desabitado me entristeceu profundamente. Meu peito estava desfalcado.
As paredes branco-gelo, pintadas exclusivamente para a venda, contrastavam com os dias cálidos de visita, nos quais as conversas repetidas e as piadas internas eram o resquício afetuoso da relação entre pai e filha. Lembro-me do café da máquina, servido depois do almoço, das xícaras coloridas e da constante insistência dele para que eu tomasse um pouco mais.
Como os planos podem acabar de súbito? Como o tempo do “ainda-é-possível-fazer-melhor” se desfaz com a matéria que se deteriorou?
As muitas perguntas ressoam dentro de mim como um disparo de alarme no meio da noite. O corpo é implacável. Finda. Não importa a sua vontade, a morte chega entregando o relatório final, como um boletim dos tempos de escola: aprovação e reprovação nas experiências vividas. É com esse resultado que passamos a dialogar.
A sensação de culpa, não rara aos que permanecem vivos, também me sobrevém vez ou outra. Porque, no fundo, todas as mortes são evitáveis. São prenunciadas muito antes do seu acontecimento. Mensagens tênues e subliminares emitem sinais de que o cenário mudou e de que o fim está próximo. Mas como se existisse um pacto originário dentro de nós com o “natural das coisas”, tapamos os olhos e deixamos tudo tomar seu devido rumo.
Meu pai não era mais ele mesmo. Sempre comunicativo, começou a se calar. Não escutava mais música, não cantava, não falava mais tanto de viagens, coisas que ele sempre amou. Me perguntava sobre o que eu havia acabado de lhe dizer, como se sua memória não absorvesse mais o que eu lhe contava.
Ignorei os indícios, escolhendo acreditar que ficaria tudo bem. Mas, com o passar dos meses, minhas observações persistiram e resolvi sugerir que se consultasse com um geriatra. Ele foi enfático ao recusar a sugestão. Acho que a palavra geriatra pesava. Aceitar o envelhecimento pesava. E para mim, aceitar que o meu pai não estava mais ali como eu sempre o conheci, pesava.
Sua morte significou para mim não só o fim repentino do seu corpo, mas o fim repentino de uma era. O fim de algumas esperanças ainda guardadas na caixa das histórias mal resolvidas, o fim das risadas que tínhamos lembrando de situações memoráveis como a do “beijo gostoso”, da “parentela”, e a da “vocês conhecem Elis?”. O fim de um homem que construiu sua vida de uma maneira tão independente que, no momento de necessidade, se viu de certa forma desamparado. No real da vida, ele viveu seus últimos dias só contando comigo, com meu irmão e com menos de meia dúzia de amigos. A autonomia e a individualidade só funcionam quando o corpo está perfeito e se tem todas as capacidades em dia. Quando estamos mal, a independência entrega a conta. Achei cara.
Desfazer do seu apartamento durante os meses que transcorreram à sua morte, foi ao mesmo tempo um retorno ao pai do passado e um encontro com um homem desconhecido. Pais e mães têm vidas para muito além dos filhos. É incomodo entrar na intimidade dos nossos pais, mexer nas gavetas, ler textos pessoais deixados no computador, ver fotos de viagens nas quais você não participou.
Comecei a encontrar objetos e até um diário que ele começou a escrever em 1977 quando soube que minha mãe estava grávida de mim. Ele chamou de “caderno de anotações” porque "achava muito ridículo a palavra diário” (está escrito isso na primeira página do caderno). Morri de rir porque é a cara do meu pai dizer isso. Estranho como as pessoas vivem dentro da gente com suas vozes. Podemos fechar os olhos e escutar direitinho, rever os gestos, a maneira de falar...
“Em algum lugar do passado”, com o ator Christopher Reeve, um dos filmes preferidos do meu pai, e que eu vi algumas vezes nas férias escolares de janeiro porque ele tinha em uma fita VHS, estava lá em uma das gavetas. O souvenir do Galo de Barcelos, símbolo de Portugal, que meu pai tinha comprado em sua primeira viagem à Europa, e que me fascinava quando era criança, o dominó antigo, herdado de seu pai, meu avô, com o qual jogávamos nós três - eu, ele e meu irmão, as taças de vinho que comprei para ele quando fiz minha primeira viagem a São Paulo, já jovem adulta e me achando a mulher feita.. Tudo lá, espalhado por aquele museu de afeto e desafetos.
Eletrodomésticos, roupas, comidas na geladeira, remédios, material de limpeza intactos, foram me abduzindo por tantas memórias e pensamentos. Me senti só no meio daquilo tudo. Meu irmão, por motivos alheios ao meu entendimento, não quis compartilhar esse momento comigo. Alternávamos indo à casa do meu pai para retirar os objetos e móveis. Foram quatro meses de idas e vindas nesse apartamento até que tudo se fez um nada.
Lembranças de partidas são dores que carregamos por toda uma vida. Aprendemos a administrá-las, a posiciona-las de um jeito no corpo para que não doam sempre. Mas basta um cheiro, uma fala, a cena de um filme ou uma música, que elas doem e você lembra que morreu um pouco também.
Nos últimos tempos perdi pessoas importantes para mim. Tenho vivido lutos e aprendido a conviver com eles. Perder meu pai foi como acordar mais órfã. Assinar a certidão de óbito dele foi indescritivelmente dolorido. Ele tinha muitos defeitos, mas era meu pai. Foi meu primeiro amigo, com quem aprendi o prazer de olhar para o céu e refletir sobre outras existências nas galáxias ou apenas a filosofar. Mudou a minha alma perde-lo.
Dia desses foi-se também um amigo, que escolheu ir. Sua morte, como as outras, era evitável. Morri um pouquinho mais, e outra vez. Também consigo lembrar da sua maneira de falar e as vezes rio por dentro, rio lembrando das besteiras que ele falava, dos tempos de universidade, rio indo. Meu pai dizia: “Tatiana, é pra frente que se anda”. Essa potência motriz, tão capaz do movimento, eu herdei dele, e com isso tenho aprendido a viver em equilíbrio com o mundo que se vê e com aquele que não se vê, mas é tão palpável quanto.
Antes da pandemia, estávamos combinando de viajar a São Paulo e a Pirenópolis. Essas duas viagens não vão acontecer mais com meu pai. Sinto tristeza por isso, mas nao paralisia. Quero viver e me sinto feliz em ter capacidades. Me sinto abençoada por ter tido esse pai e agradecida. E assim vou seguindo o caminho.
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